Dívida de aposentado e pensionista com empréstimo consignado cresce quatro vezes mais que reajuste do INSS. Violência financeira representa 21% das denúncias de abusos contra idosos, segundo pesquisa do governo.
A recuperação do poder de compra das aposentadorias nos últimos anos foi acompanhada por uma explosão de endividamento dos idosos, que têm se tornado vítimas de casos crescentes de abusos financeiros.
Nos últimos três anos, o saldo das dívidas de aposentados e pensionistas na modalidade de crédito consignado cresceu 27% (descontada a inflação), de R$ 52,5 bilhões para R$ 66,8 bilhões, segundo dados do Banco Central.
O aumento é quatro vezes maior que o reajuste real de 5,2% dos benefícios pagos pela Previdência a esse grupo e quase três vezes superior ao crescimento de 7% no número de aposentados e pensionistas, para 42,2 milhões. Também ultrapassa, de longe, a expansão de 3,7% dos empréstimos consignados a funcionários públicos. Somente em 2013 o valor dos novos contratos de consignados contraídos por aposentados e pensionistas dobrou, de acordo com o INSS, atingindo R$ 31 bilhões.
Parte desse maior endividamento é consequência de um problema crescente no país: a violência financeira, que representa 21% das denúncias de abusos contra idosos compiladas pela Secretaria de Direitos Humanos.
Profissionais de saúde, assistentes sociais, promotores e representantes de ONGs relatam que os casos de idosos que têm suas pensões e aposentadorias gastas por familiares são recorrentes. Segundo eles, têm aumentado também as situações em que aposentados contraem empréstimos a pedido de filhos ou outros familiares.
“Já tivemos até caso de familiar tentando pegar as digitais do pai, que estava internado inconsciente na UTI, para contrair um empréstimo”, diz a assistente social Shirlene Leão, de Belém (PA).
RENDA MAIOR
A forte expansão do endividamento dos idosos–por conta própria ou a pedido de familiares–veio na esteira da recuperação de sua renda. Nos últimos anos, os benefícios pagos pelo INSS a aposentados e pensionistas tenderam a ser reajustados acima da inflação.
Esse movimento coincidiu com o surgimento do crédito consignado, modalidade em que a prestação do empréstimo já vem descontada da folha de pagamento e cujos juros são mais baixos. A maior segurança nesse tipo de empréstimo levou a uma ofensiva dos bancos à busca de clientes. O problema, segundo especialistas, é que a contratação de um crédito consignado tem levado a outras operações que vêm alavancando o endividamento dos idosos.
É o caso do chamado seguro prestamista, que garante o pagamento da dívida em caso de morte do devedor. A aposentada Judith Resende do Prado, 63, por exemplo, reclama que os seguros contraídos para cada uma de suas três dívidas oneram ainda mais seus custos.
“Eu nem tinha noção de quanto pagava só de seguro.”
Com dificuldade de conciliar as dívidas e as despesas familiares, Judith procurou recentemente a ONG ABC (Associação Brasileira do Consumidor) em busca de ajuda.
Cliente lesado em empréstimo pode buscar ajuda
O primeiro passo antes de contratar um empréstimo, segundo especialistas, deve ser uma reestruturação do orçamento familiar. Mesmo que o financiamento seja inevitável, a reorganização das despesas pode diminuir o valor do crédito necessário. Segundo especialistas, a recomposição salarial dos aposentados nos últimos anos contribuiu para o aumento do endividamento dos idosos.
“Os idosos têm sido assediados por familiares e instituições financeiras e caído num ciclo de endividamento perpétuo”, diz Marcelo Segredo, diretor da ONG ABC (Associação Brasileira do Consumidor).
Fábio Pina, assessor econômico da Fecomercio-SP, diz que, com a atual desaceleração do crédito e do crescimento econômico, o momento, agora, é de maior cautela. “Aumentaram os riscos para todos.”
CANAIS DE AJUDA
Para quem já tem dívidas, analistas recomendam uma análise cuidadosa dos contratos firmados. Especialistas afirmam que é proibido vincular a concessão de um empréstimo à comercialização de outros produtos, como os seguros prestamistas, que garantem o pagamento do financiamento.
Se o cliente quiser produtos desse tipo, deverá autorizar a contratação por escrito ou meio eletrônico. Empréstimos com débito direto na conta também precisam ser autorizados. Caso se sinta lesado em uma operação de crédito, o cliente pode recorrer diretamente ao banco por meio de SACs e ouvidoria – ou a canais externos.
É possível, por exemplo, registrar uma queixa na área de atendimento ao cidadão no site do Banco Central (www.bcb.gov.br). Outros caminhos são a procura da defensoria pública, das delegacias dos idosos, dos tribunais de pequenas causas e dos Procons. Esses canais prestam atendimento gratuito.
Há ainda a opção de buscar a ajuda de ONGs que oferecem orientação e atendimento jurídico para consumidores que estão enfrentando problemas com dívidas.
‘É uma tentação grande’, afirma aposentada
Queixas de venda irregular de seguro de vida triplicam desde 2010
Febraban diz colaborar com mais da metade da renda da aposentada Judith Resende do Prado, 63, nem passa por suas mãos. Com dois empréstimos consignados cujas prestações são descontadas do seu benefício, uma linha de crédito com débito automático na conta-corrente e a utilização recorrente do limite de cheque especial, Judith é considerada superendividada.
“Os bancos me ligam o tempo todo oferecendo empréstimos. É uma tentação grande para quem é pobre e tem renda baixa”, diz.
Além dos empréstimos, a aposentada paga seguros que, segundo ela, contratou por ter entendido que eram necessários para a obtenção do crédito. “Os bancos dizem que é necessário. Nas vezes em que argumentei que não queria, me perguntaram quem pagaria minha dívida caso eu morresse”, diz ela, que sustenta um neto adolescente.
Segundo órgãos de defesa do consumidor, é crescente o número de idosos que buscam ajuda para lidar com dívidas e dizem que contrataram seguro sem notar ou por achar que era obrigatório. Condicionar um empréstimo bancário à venda de outro produto é proibido. As reclamações sobre a chamada “venda casada” envolvendo seguro de vida que chegam ao Banco Central triplicaram entre 2010 e 2013, saltando de 86 para 276 por ano.
Em nota, a assessoria de imprensa da instituição diz não ter como saber, no entanto, se os reclamantes são aposentados ou idosos porque sua idade não é computada na tabela de queixas.
Vera Remedi, assessora-executiva do Procon-SP, considera “muito grave” o apelo que os bancos fazem aos idosos para se endividar.
“O endividado idoso é mais vulnerável, está mais exposto à pressão”, afirma. Existe um limite legal para a contratação de crédito consignado que é de 30% da renda. Mas, segundo Vera, muitas vezes, os idosos, como Judith, acabam contraindo outros empréstimos, além de produtos como seguros.
Ela conta ter atendido recentemente uma aposentada que tinha contraído uma dívida de R$ 10 mil e um seguro prestamista de R$ 3.000, a uma taxa de 4,9% ao mês: “Esse seguro de R$ 3.000 financiado virou R$ 8.000 e contribuiu para que a dívida total chegasse a R$ 50 mil”. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou, por meio de nota, que “colabora com autoridades policiais, com os Procons e outros órgãos de defesa do consumidor, a fim de coibir eventuais irregularidades” na venda do crédito consignado.
Também por escrito, o INSS ressaltou apenas que há um teto para o comprometimento da renda de aposentados e pensionistas com crédito consignado e para os juros cobrados nesse tipo de empréstimo, que é de 2,14%.
Denúncia de violência financeira contra idosos cresce mais de 300%
Queixas geralmente são anônimas porque eles relutam em pedir ajuda e temem denunciar familiares. Aposentado geralmente consegue empréstimo consignado para pessoa da família, e não para ele, diz assistente social. As denúncias de abuso financeiro contra idosos quadruplicaram no país entre 2011 e 2013, passando de 4.052 para 16,8 mil.
Os dados são compilados pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência com base nas ligações recebidas pelo serviço Disque 100. O crescimento dos casos da chamada violência financeira – assim como os de negligência e violência psicológica – contra idosos tem preocupado os especialistas e foi um dos temas do último congresso brasileiro de geriatria.
As denúncias geralmente são anônimas porque os idosos relutam em pedir ajuda. O promotor público cearense Alexandre de Oliveira Alcântara, do Conselho Nacional do Direito do Idoso, diz que atende muitos casos de familiares “brigando” para tomar conta do idoso.
“Na verdade, muitos querem é ficar com o cartão [bancário] dele”, afirma.
Alcântara relata ter atendido um caso de uma idosa que tinha contraído cinco empréstimos para a filha. “Uma das irmãs veio denunciá-la e queria ficar com a mãe. Quando eu afirmei que podia ficar, mas que estariam proibidos novos empréstimos, ela disse: mas, doutor, justamente na minha vez?'”
Segundo ele, mesmo sabendo que está sendo explorada, a maioria dos idosos prefere não denunciar os familiares por medo de punição, por vergonha ou por dó.
É o caso da aposentada M.R.B., 73, de São Paulo, que teme contar sua história por receio da reação da filha. “Ela pegou o meu dinheiro que estava na poupança. Eram R$ 3.000, economizados com muito custo. Disse que precisava pagar uma dívida. Pedi o dinheiro de volta, mas já desisti.”
M. é viúva, ganha R$ 1.500 de pensão por mês, e mora com a filha na zona norte da capital. Quase metade do que recebe é para pagar um empréstimo no banco e o “carnê” de uma TV nova comprada em seu nome. A filha, de 50 anos, não trabalha. O neto, de 22 anos, vive de bicos. A única renda certa na casa é de M. Ela se sente explorada financeiramente, mas “nem em sonho” pensa em denunciar a filha. Situação semelhante vive o aposentado João, 78. O genro é quem recebe o seu pagamento e fica com seu cartão bancário. “Ele diz que é perigoso eu ir ao banco buscar minha aposentadoria.”
João diz não ter “coragem” de pedir o cartão de volta porque não quer “arrumar confusão” com o genro. Segundo João, parte da aposentadoria, de R$ 1.850, já está comprometida com a compra de uma geladeira, parcelada em 12 vezes, e com um empréstimo contraído para a reforma da casa onde mora com a filha: “No final do mês, não sobra nada.”
Segundo a assistente social Marília Berzins, doutora em saúde pública pela USP, pesquisas mostram que os idosos geralmente não obtêm empréstimo consignado para eles, e sim para familiares. “Muitas vezes o idoso não percebe que está sendo violentado nesse sentido.”
Outros, porém, têm consciência da exploração que sofrem, mas não conseguem reagir. “Em geral, esses idosos moram com filhos ou netos que os exploram. Não têm mais ninguém a quem recorrer. É muito difícil romper essa cadeia.”
por CLÁUDIA COLLUCCI e ÉRICA FRAGA fonte: Folha de São Paulo – Edição de 22 Junho 2014 – Caderno Mercado